terça-feira, 29 de outubro de 2013

DEMOCRACIA E A ACTUALIDADE DO RUMO À VITÓRIA



Congresso «Álvaro Cunhal, o projecto comunista, Portugal e o mundo de hoje»
26 e 27 de Outubro de 2013, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Intervenção de Pedro Carvalho

Queria começar por saudar todos os participantes neste Congresso e salientar a importância da sua realização. Pois a actualidade do pensamento e da obra de Álvaro Cunhal dão um contributo fundamental para a compreensão da situação nacional e das linhas de acção para construir o futuro de Portugal, rumo ao socialismo, do qual a democracia é uma peça inseparável.

Esta intervenção visa sublinhar algumas reflexões, nomeadamente sobre a democracia, democracia económica e a actualidade do «Rumo à Vitória».

Camaradas e amigos,

Existe uma contradição  entre o capital monopolista e a democracia politica. Num artigo de 1994, «a Revolução de Abril 20 anos depois», Cunhal afirmava que «o capitalismo monopolista, tal como é a negação da democracia económica, é também por natureza inimigo da democracia política». O estado de direito, «onde o poder politico ao serviço do grande capital se reserva o direito de alterar e desrespeitar a legalidade», é disso exemplo. Veja-se hoje o desrespeito pela Constituição e a violação de todos os contratos sociais.

Cunhal afirmava então, que estava em marcha «uma política de restauração do capitalismo monopolista», que «destrói recursos e potencialidades que vêm do passado, que provoca uma penosa crise no presente e que faz pesar sobre Portugal gravíssimas ameaças para o futuro». Esta descrição que fez da era de Cavaco, podia ser transposta para os dias de hoje, onde a ofensiva de classe em curso, espolia o povo e ajusta contas com Abril, hipotecando com dívida e a venda de activos ao capital estrangeiro a independência nacional.

A democracia inscrita em Abril foi mais ampla do que a conquista das liberdades políticas. Para Cunhal, a democracia política «exigiu para a sua própria concretização, por razões objectivas e subjectivas, transformações democráticas na esfera económica, social e cultural. Inversamente, estas transformações de natureza democrática apenas foram possíveis pela profundidade e riqueza do processo de democratização política». 
As conquistas  da revolução de Abril projectam-se como valores e elementos programáticos para o futuro democrático de Portugal. Como elementos que visam criar as condições de transformação social, de transformação dos alicerces capitalistas, numa transição para o socialismo.

Para Cunhal, a revolução democrática e nacional, parte integrante do programa do Partido, «estabelecia uma ligação de carácter inseparável entre os objectivos políticos, económicos e sociais e culturais da democracia no quadro necessário da independência e soberania nacionais». A instauração «das liberdades democráticas, a destruição do estado fascista e a sua substituição por um Estado democrático», eram «um objectivo central da revolução democrática e nacional e uma condição primeira e indispensável  para a realização dos outros objectivos», traçados no programa do PCP de 1965. Sem os quais «a revolução democrática e nacional não está acabada e não estará assegurado o desenvolvimento democrático e independente da sociedade portuguesa».

Esta é a etapa em que estamos, num processo contra-revolucionário, encetado a 25 de Novembro de 1975. Um processo moldado historicamente pelos programas de ajustamento estrutural do FMI de 1977 e 1983, pelas ajudas de pré-adesão à CEE e nossa posterior adesão até à actual intervenção externa.

Em 1964, o relatório ao Comité Central do PCP apresentado por Álvaro Cunhal, decorridos 38 anos de ditadura fascista, fazia uma análise aprofundada da situação económica e social do país e das condições objectivas e subjectivas da luta. Definia as tarefas do Partido na revolução democrática e nacional, apresentando um programa mínimo de acção. Apontava a necessidade da convergência unitária das camadas anti-monopolistas e anti-imperialistas, com o objectivo principal de derrube do estado fascista, tendo por base um levantamento nacional assente na elevação da luta de massas.

Programa que veio a ser aprovado pelo VI Congresso e que teve uma importância estratégica no derrube no fascismo, criando as condições objectivas que permitiram que um golpe militar se transformasse numa revolução.

Hoje, decorridos 38 anos de contra-revolução, Portugal encontra-se sequestrado e a empobrecer, mergulhado numa crise económica e social, sobre intervenção externa e com uma cada vez maior dependência ao exterior, em paralelo com um progressivo ajuste de contas com as conquistas de Abril. 

Como em 1964, as condições objectivas são favoráveis para fazer avançar a revolução democrática e nacional, não esquecendo o papel que Portugal desempenha no sistema capitalista mundial. A situação internacional é diferente de então, quando 1/3 da humanidade vivia em países socialistas, mas é verdade também que o mundo capitalista está no meio de uma crise sistémica que se arrasta há mais de quatro décadas sem solução, com consequências sociais e ambientais devastadoras.

Como afirmava Cunhal, «nenhum povo oprimido pode esperar que sua libertação venha do estrangeiro», nem o regime desaparecerá num «processo automático, em consequência das suas contradições internas ou por pressão de acontecimentos internacionais (...) só o povo português pela sua luta pode conduzir o país pelo caminho da paz, da independência e do progresso social». O que diferencia o momento em que estas palavras foram escritas, é que hoje Portugal tem o património de Abril, cujo legado democrático resiste, apesar de todas as perversões.

Temos que agir à altura do momento histórico. Como apontava Cunhal, «cabe ao partido analisar a situação existente, encontrar soluções políticas ou tácticas adequadas» para «conduzir a luta do povo português à vitória».

Então como hoje, o país tem os recursos naturais suficientes para garantir o bem-estar material a todos os portugueses. O atraso deriva, como apontava Cunhal «destes recursos serem explorados por uma dúzia de grupos monopolistas, latifundiários e o imperialismo estrangeiro». Este retrato do Portugal fascista, adequa-se a realidade de hoje. Cunhal salientava «que Portugal está para os países mais desenvolvidos, como a economia das colónias portuguesas está para Portugal». Esta é a lei do desenvolvimento desigual do capitalismo em funcionamento.

O modelo produtivo português assente em baixos salários e, por isso, em sectores de baixo valor acrescentado, assim como na reexportação, dependente de importações e financiamento externo. Um modelo inserido em cadeias de subcontratação sobre o domínio do capital multinacional que opera no mercado interno europeu, foi paulatinamente imposto e reforçado com a adesão de Portugal e por via da máquina do Estado.

Um modelo que acentuou todos os défices e consequentemente a dependência externa, nomeadamente da dívida, impondo condicionalismos ao modelo de desenvolvimento económico e social endógeno saído da Revolução de Abril.
Então como hoje, Cunhal salientava no Rumo à Vitória que para «sustentar uma máquina do estado ao serviço dos grupos monopolistas, aumenta-se ano após ano os impostos fazendo cair o grosso da carga tributária sobre a classe trabalhadora e classe média. E, como isso mesmo lhe não chegue, recorre empréstimos de forma crescente. A dívida pública, na maior parte absorvida por despesas improdutivas, alcança já 20 milhões de contos, tornando-se um permanente sorvedoiro de recursos».

Este retrato do fascismo tem semelhanças com a austeridade que vivemos e um dos problemas é que hoje existem euros e não contos/escudos.

O capitalismo monopolista de estado garantia a sustentação das taxas de lucros dos grupos monopolistas e suas rendas, utilizando os recursos do estado e do país ao seu serviço. A divida privada era transformada em dívida pública, para além da dívida decorrente da guerra colonial.

Hoje, o processo continua, seja com as parcerias público-privadas, as privatizações ou as despesas fiscais a favor do capital. O novo «sorvedoiro» não é a guerra, mas a injecção directa de milhares de milhões de euros no sistema bancário e financeiro, numa tripla exploração do trabalho.

Primeiro, decorrente da redução da parte do produto que vai para o trabalho, evidenciado o aumento da taxa de exploração. Depois, sobre a forma de juros paga ao capital financeiro, via o progressivo endividamento da classe trabalhadora. Por último, sobre a forma de impostos pagos ao estado, ao serviço do grande capital que opera em Portugal, sobretudo financeiro.

O «sorvedoiro» de recursos continua, com as saídas de capital sobre a forma de juros e dividendos para o exterior.

Existem, contudo, alterações de grau, a elevação do capitalismo monopolista de estado a um patamar europeu, o peso esmagador do capital financeiro e da oligarquia financeira que lhe dá suporte e o papel mais periférico do capitalismo nacional, traduzido na sua natureza cada vez mais rentista e subserviente ao capital estrangeiro.

«A revolução porque lutámos é uma revolução democrática e uma revolução nacional», afirmava Cunhal, considerando que «o governo fascista é o governo terrorista dos monopólios associados ao imperialismo estrangeiro».

Hoje, temos um governo, com um programa de intervenção externa que fez seu, ao serviço do capital financeiro e do capital monopolista, sobretudo estrangeiro, num contexto onde a nossa participação no processo de integração capitalista europeia impõe constrangimentos absolutos à nossa soberania

«Liquidar a base social de apoio do poder instalada e realizar uma transformação social profunda da sociedade portuguesa, tendo por base assegurar a independência nacional», como se sublinha no «Rumo à Vitória», são hoje tão estratégicas como então.

A democracia política, não apaga o cariz antidemocrático da situação actual de subserviência do poder político ao poder económico, onde a desvalorização do trabalho e sua desestruturação, tendo por base a  arma de sempre do capitalismo - o desemprego, são elementos limitadores da liberdade e reveladores do grau de intensificação da exploração do trabalho.

É a «acumulação da miséria que torna possível a acumulação da riqueza», apontava Cunhal, sublinhando que com o suporte do estado, «o grande capital diminui salários reais, aumenta a intensidade e produtividade do trabalho, prolonga a jornada de trabalho, apura os métodos mais variados para agravar a exploração dos trabalhadores». Este retrato de então, como hoje, evidencia os meios da exploração capitalistas, sendo de relembrar que o estado fascista também é capitalista.  

É no contexto da exploração, que a luta pelo aumento dos salários assume importância estratégica, contribuindo para a elevação das condições de vida da classe trabalhadora. Como notava Cunhal, «se não fosse essa luta constante pelo aumento dos salários é difícil de imaginar a que extremo de miséria a burguesia haveria já reduzido os trabalhadores».

O papel do estado hoje continua essencialmente o mesmo: intensificar a exploração do trabalho e promover a concentração e centralização do capital. As privatizações são parte integrante deste processo de liberalização dos mercados, onde o capital monopolista pretende entrar, para depois transformar o monopólio público em monopólios/oligopólios privados, com rendas garantidas. Com uma presença cada vez maior do capital estrangeiro.

Já no «Rumo à Vitória» se apontava que o capital estrangeiro «significa para Portugal não apenas a perda de independência económica, como a perda de independência politica, pois atrás do domínio económico vem a intervenção e influência na politica nacional, as exigências de caracter político, diplomático, militar e o auxilio do governo que serve os imperialistas». Ou seja, de «nenhum grande grupo português se pode hoje dizer ... [que] é só português».

Com acutilância, Cunhal afirmava que «o capital financeiro português partilha (...) voluntariamente com o imperialismo a exploração do nosso povo, torna-se um instrumento da dominação crescente de Portugal pelo imperialismo estrangeiro».

E continuava, afirmando que «a participação de Portugal nas zonas europeias do comércio livre agrava ainda mas a situação de dependência em relação ao imperialismo (...) o que representa para Portugal a adesão ao mercado comum? (...) aumentar o processo de concentração e centralização do capital (...) dar mais poder aos monopólios (...) [o] agravamento da exploração da classe operária (...) o aumento estrutural do desemprego e a desvalorização dos salários reais (...) aumento da dependência ao nível do comércio externo (...) com a invasão de produtos industriais dos paises capitalistas mais desenvolvidos (...) maior crise para a agricultura portuguesa (...) uma invasão do capital estrangeiro, com a ligação crescente do capital financeiro português com os grandes monopólios internacionais, acentuando ainda mais o domínio imperialista sobre Portugal».

Ou seja, a adesão de Portugal à então CEE significava a consolidação do processo contra-revolucionário em curso e um ataque dirigido ao programa do Partido de revolução democrática e nacional.

Cunhal sublinhava que «a libertação dos imperialistas não aparece ainda com suficiente nitidez como uma reivindicação política fundamental. (...) Se a revolução democrática deixasse intacta as posições imperialistas, não só não poderia caminhar Portugal para o progresso e bem-estar, como o novo regime democrático em qualquer momento poderia ser apunhalado pelas costas».

O programa mínimo que saí do «Rumo à Vitória», continua a manter acutilância e a ser um guia de acção revolucionária, para a transformação de Portugal.

A abolição do poder dos monopólios, tem que hoje ter em conta o seu cariz cada vez mais multinacional e centralizador, mas sobretudo a afirmação do objectivo de libertação do domínio do capital financeiro e da oligarquia financeira que o suporta, sendo as nacionalizações um instrumento chave. A reforma agrária, continua a ser uma exigência central, com um contributo cada vez maior para a manutenção da independência nacional.

A elevação do nível de vida e da cultura das classes laboriosas é uma questão fundamental, não só para responder ao desenvolvimento económico e social, como para criar as condições objectivas de transformação da sociedade, alterando a correlação de forças entre trabalho e capital.

A libertação de Portugal do imperialismo é um outro objectivo, tendo como elemento essencial a libertação das amarras da integração capitalista europeia e a derrota do instrumento de classe União Europeia.
  
Uma politica de paz e amizade com todos os povos, de diversificação das relações económicas reciprocamente vantajosas continua um objectivo essencial, assim como a instauração de uma ordem democrática, vista como o reforço dos quatros elementos inseparáveis da democracia - politica, económica, social e cultural.

Um programa mínimo que respondia ao momento histórico de então. Um programa de transição cuja cabal realização abria o caminho a um Portugal socialista, aliás como inscrito no nosso texto constitucional. Uma política de alianças sociais, do proletariado, aos pequenos e médios agricultores, à pequena burguesia urbana e sectores da média burguesia e aos intelectuais,  que constituía uma frente ampla anti-monopolista e anti-imperialista.

A participação do partido num movimento unitário, «colocando-se e colocando a classe operária na vanguarda do movimento», sem sectarismos, nem oportunismos, que conduziriam ao isolamento ou a diluição do partido.

Um programa, como afirmava Cunhal «sem a preocupação de programas minuciosos de governo, de curto prazo (...) que distrai das tarefas fundamentais e as linhas de acção principais na construção revolução democrática e nacional». Um programa de poder. De tomada do poder, por um levantamento nacional e insurreição popular, sendo a conclusão natural da luta de massas, da movimentação geral e organização da classe operária e seus aliados.

As forças políticas que «se propõem conquistar o poder e operar profundas transformações na sociedade portuguesa, não se podem limitar a tomar conta do aparelho do estado fascista. Tem do destruir», sublinhava Cunhal, parafraseando Lénine quando que «a tarefa que se coloca as classes que conquistam o poder é não melhorar a máquina do estado, mas demoli-la, destrui-la».

«Se as forças democráticas, tomando conta do poder, pudessem conservar a actual máquina do estado, nunca chegariam a realizar-se quaisquer reformas democráticas sérias. A contra-revolução surgiria de seguida», lembrava Cunhal. O rumo do processo revolucionário veio-lhe dar razão.

«Criar um estado democrático, em que a classe operária e seus aliados sejam as classes dominantes, significa criar um exercito democrático, uma política democrática, uma justiça democrática e órgãos de poder que assegurem ao povo português a escolha e determinação da politica nacional. Só um estado democrático poderá garantir a liberdade ao povo português», frases que permanecem válidas, num contexto político diferente.

O aprofundamento da democracia, em todas as suas vertentes, é elemento essencial para criar as condições futuras de superação do sistema vigente, rumo ao socialismo.

Vivemos um momento histórico particular. A nível internacional, o sistema vivencia uma crise sistémica para o qual não encontrou saídas, com riscos de derivas destrutivas para a humanidade, o que afecta também o desenvolvimento do capitalismo nacional e a crise que atravessámos.

Ao nível nacional, agravam-se as contradições das classes dominantes, a base material que as suporta, ao mesmo tempo em se agudizam as condições de vida do povo.

Hoje, como no passado, cabe ao partido saber identificar o momento histórico. Não é apenas preciso, como dizia Lénine, «que o povo não queira, é também necessário que as classes dominantes não possam viver como até então». Por isso, a questão é se hoje, existem as condições objectivas e as subjectivas para continuar e aprofundar a revolução democrática e nacional?

A situação de crise sistémica em que vivemos, cuja resposta cada vez maior intensificação da exploração do trabalho, não consegue contrariar a crise de rentabilidade do capital que o sistema vive, ao mesmo tempo em que se agudizam as contradições e os limites do próprio sistema, num contexto de agravamento brutal das condições de vida das camadas mais desfavorecidas, parecem evidenciar que as condições objectivas estão cada vez mais presentes. Mas sendo as coisas dialécticas, podemos afirmar que as condições subjectivas estarão atrasadas?

É sobre estas que temos que actuar, elevando o grau de consciência de classe e de organização da luta, pela intensificação na luta de massas, assente num programa mínimo de acção. Num contexto, em que temos de estar atentos aos acontecimentos «menores», que podem ser os elementos incitadores de uma mudança, «como uma gota faz transbordar o vaso», a nível nacional e internacional.

Como afirmava Cunhal no Rumo à Vitória, temos que «apoiados nos factos, trabalharmos para apressar a criação de uma situação revolucionaria e para criar condições politicas e de organização de forma a estarmos a altura das exigências dessa situação. Este é o dever do nosso partido». Esta é a nossa responsabilidade, o nosso papel histórico, a nossa luta. Com o compromisso que lutaremos até esse amanhã chegar. 

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